Na aviação, muita coisa evoluiu: sistemas, normas internacionais, simuladores ultrarrealistas, programas de monitoramento de fadiga. Mas um tema permanece rodeado de silêncio — a saúde mental do piloto. Um silêncio tão pesado que, em muitos casos, se torna ele próprio um fator de risco operacional.
A história de Brian Wittke, piloto de linha aérea e pai de três filhos, tornou-se símbolo desse dilema. Sua trajetória expõe o conflito vivido por centenas de profissionais: como pedir ajuda quando pedir ajuda pode custar sua licença?
✈️ A turbulência que não aparece no FDR: quando o piloto esconde a própria dor
Wittke era visto como um piloto competente, disciplinado, aquele tipo de aviador que inspira confiança. Porém, longe do cockpit, enfrentava uma batalha silenciosa contra a depressão.
Sua maior preocupação não era a doença — mas o medo de ser afastado, investigado, rotulado. Um receio comum entre pilotos nos Estados Unidos, no Brasil e em praticamente todos os sistemas regulados por certificação médica aeronáutica rígida.
Estudos e depoimentos de profissionais mostram que muitos pilotos evitam:
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buscar terapia;
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relatar sintomas de ansiedade ou depressão;
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usar medicação prescrita;
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contar à empresa ou ao médico examinador qualquer desconforto emocional.
O motivo?
O temor de uma palavra no prontuário resultar em grounding imediato, revisão médica longa e custosa e, no pior cenário, fim da carreira.
✈️ O padrão de comportamento: “Se você não está mentindo, você não está voando”
Essa frase, repetida em tom de humor amargo entre pilotos americanos, sintetiza um problema estrutural:
a cultura aeronáutica ainda trata fragilidade emocional como falha operacional.
E isso não é apenas injusto — é perigoso.
Quando o piloto teme buscar ajuda, cria-se um ambiente onde:
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problemas leves evoluem para quadros graves;
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sintomas se escondem até o limite;
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decisões críticas podem ser afetadas pela falta de apoio psicológico;
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o próprio sistema de segurança de voo perde a capacidade de prevenção.
A aviação moderna prega “just culture”, mas, na prática, muitos pilotos sentem que qualquer desvio emocional pode ser interpretado como falta de confiabilidade.
✈️ A FAA, a EASA e o desafio global: como tratar saúde mental sem punir o profissional
Após o acidente da Germanwings em 2015, a EASA tornou obrigatório que companhias aéreas europeias ofereçam programas de apoio entre pares (Peer Support Program). Nos EUA, a FAA afirma estar revisando protocolos, mas pilotos ainda relatam processos longos e imprevisíveis para recuperar certificações após tratamento psicológico.
A regra é conhecida, mas raramente discutida entre leigos:
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Pilotos precisam declarar qualquer uso de antidepressivos, ansiolíticos ou terapia.
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Mesmo quadros leves podem levar ao afastamento.
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O processo de recertificação pode durar meses ou anos.
É compreensível que haja rigor — a aviação vive de confiança.
O problema é quando esse rigor desestimula o tratamento, criando um paradoxo perigoso para a própria segurança de voo.
✈️ A família que transformou luto em alerta: a mãe que tenta mudar a cultura aeronáutica
Após a morte de Brian Wittke, sua mãe, Annie Vargas, encontrou uma forma simbólica de manter viva a memória do filho: uma libélula dourada que apareceu após o memorial. Ela passou a usá-la como convite para conversas sobre perda, acolhimento e saúde mental.
Ela fala sobre o filho porque acredita que novas histórias não precisam ter o mesmo final.
E porque entende que abrir o diálogo é a única forma de quebrar o estigma.
“Aviadores são humanos. Eles têm medos. E não deveriam ser punidos por enfrentá-los”, disse Vargas.
✈️ Por que falar disso no Instituto do Ar? Porque saúde mental é parte da segurança operacional
A segurança de voo é construída sobre quatro pilares:
treinamento, técnica, tomada de decisão e equilíbrio emocional.
Ignorar um deles compromete todo o sistema.
Para reduzir riscos, é necessário:
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criar sistemas de apoio psicológico sem caráter punitivo;
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ajustar regulações para acolher casos leves sem afastamento automático;
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treinar lideranças e gestores de operações para lidar com saúde mental;
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promover cultura de relato, não de ocultação;
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humanizar o processo de certificação médica aeronáutica.
A aviação sempre foi pioneira em aprender com tragédias.
Talvez seja hora de aprender, também, com as dores que permanecem invisíveis aos olhos dos passageiros.✈️ Conclusão: o cockpit exige precisão — mas antes disso, exige humanidade
Quando um piloto fecha a porta da cabine, centenas de vidas depositam nele confiança absoluta.
É justo que ele possa confiar, também, no sistema que o certifica e no ambiente em que trabalha.
Se a aviação quer continuar sendo referência global em segurança, precisa compreender que pilotos não são máquinas. São profissionais altamente treinados que, como qualquer ser humano, podem adoecer — e precisam ter onde pedir ajuda.
A cultura aeronáutica sempre foi movida por lições.
A próxima lição talvez seja esta:
voar com segurança começa permitindo que o piloto seja humano.
Sugestão e colaboração:Cmte,Prof.ESP Nelson Alexandre ORO

Excelente artigo Marcus Reis, bem de acordo com o sugerido na reportagem origem. É passado o momento de começar à olhar em volta. Outro assunto importante à ser abordado é o uso abusivo de álcool e substâncias controladas, que podem estar vindo à reboque das situações citadas neste artigo.
ResponderExcluirGrande abraço!
Nelson Oro.