O Brasil sempre foi um celeiro de bons aviadores. De norte a sul, nossas escolas de aviação formam pilotos técnicos, responsáveis e apaixonados pelo voo. Entretanto, um obstáculo histórico continua travando o acesso à carreira: o financiamento da formação.
Não se trata apenas do alto custo total, mas da velocidade com que esse custo precisa ser desembolsado.
Formar um piloto comercial completo, com habilitação de voo por instrumentos (IFR), multimotor, curso superior em Ciências Aeronáuticas, Jet Trainer e proficiência em inglês aeronáutico, pode ultrapassar R$ 250 mil — um valor que, se diluído ao longo de um ou dois anos, ainda seria factível para famílias de classe média. O problema é que essa despesa costuma se concentrar em curtos intervalos de tempo, tornando o fluxo financeiro insustentável para a maioria dos aspirantes.
A realidade do aluno e o ciclo interrompido
Hoje, a formação de piloto privado, que deveria durar poucos meses, frequentemente se arrasta por mais de um ano — não por falta de dedicação, mas por falta de recursos. Após essa etapa, o aluno precisa acumular 150 horas de voo para o curso de Piloto Comercial, investir no treinamento IFR, no multimotor e em cursos complementares indispensáveis para competir no mercado.
Nesse ritmo, muitos acabam interrompendo a formação, perdendo a continuidade e, em alguns casos, desistindo do sonho. Durante minha trajetória como instrutor e coordenador de curso universitário de aviação, testemunhei inúmeras famílias enfrentando essa barreira. A dificuldade não era apenas pagar, mas pagar dentro do ritmo que a formação exige.
A classe média no impasse
Uma família de classe média com dois filhos — um sonhando em ser piloto e outro em ser médico ou dentista — precisa ter uma renda mensal alta e estável para suportar esse duplo investimento educacional. A diferença é que cursos de Medicina ou Odontologia costumam contar com linhas de crédito estudantil, bolsas e financiamentos de longo prazo. Já na aviação, quase não há opções.
As escolas de formação são, em sua maioria, instituições privadas, que também enfrentam custos elevados com manutenção de aeronaves, combustível, seguros e instrutores. Portanto, não cabe à ANAC ou ao governo simplesmente “distribuir bolsas”, mas sim estimular mecanismos de financiamento inteligentes, sustentáveis e acessíveis.
O impasse do FIES e a fragmentação da formação aeronáutica
A própria dificuldade em caracterizar os cursos superiores de aviação no Brasil foi um dos grandes impedimentos para que o FIES pudesse contemplar a formação prática de pilotos.
Enquanto as instituições de ensino superior cuidavam apenas da parte teórica — disciplinas ligadas à gestão, meteorologia, navegação e segurança operacional —, a parte prática, que envolve o treinamento em aeronaves e simuladores, permanecia sob responsabilidade das escolas de aviação civil certificadas pela ANAC.
Esse descompasso gerou um vácuo institucional: o FIES, programa do MEC, não podia financiar cursos práticos em instituições que não fossem de ensino superior, e as universidades, por sua vez, não tinham como incluir legalmente as horas de voo em sua grade financiável.
Para agravar o quadro, algumas universidades exigiam a parte prática para a colação de grau, o que resultou em processos judiciais movidos por alunos que alegavam não poder se formar sem concluir a instrução de voo.
Essa confusão — que envolveu o FIES, as instituições de ensino, os alunos e até a Justiça — se arrasta há anos e nunca foi plenamente resolvida, deixando claro que o problema do financiamento da formação aeronáutica é, antes de tudo, estrutural.
Uma proposta viável
A solução passa por linhas de crédito específicas para formação aeronáutica, criadas por instituições financeiras com foco na classe média. Um modelo semelhante ao financiamento estudantil, mas voltado ao setor aéreo. Esse crédito permitiria que o aluno mantivesse uma formação fluida e contínua, sem interrupções, e que as escolas recebessem seus proventos de forma previsível e saudável.
Em um país com a dimensão e a vocação aeronáutica do Brasil, a falta de um produto financeiro estruturado para formação de pilotos é um contrassenso. Durante minha trajetória profissional, ajudei diversas famílias a buscar alternativas para conseguir sanar esse entrave, e sei de professores que chegaram a ajudar alunos com recursos próprios para evitar que desistissem da formação.
Caminhos possíveis
Uma alternativa seria a criação de uma ONG ou OSCIP dedicada ao fomento da formação aeronáutica, captando recursos e oferecendo crédito educativo a juros reduzidos. Outra via seria parcerias público-privadas ou programas de investimento social ligados a companhias aéreas e fabricantes, que também se beneficiariam da ampliação da base de pilotos qualificados.
Enquanto isso não acontece, continuamos desperdiçando talentos — jovens com vocação, disciplina e paixão pelo voo — simplesmente por falta de acesso financeiro estruturado.
Conclusão
O Brasil precisa compreender que formar pilotos não é apenas um investimento individual, mas uma necessidade estratégica para a aviação nacional. O gargalo financeiro na formação é o elo que falta para tornar o processo mais justo, contínuo e eficiente.
Não é papel do governo subsidiar, mas é papel do sistema financeiro criar instrumentos que tornem o sonho possível — para que novos aviadores possam decolar sem que o peso do custo os mantenha presos ao chão.
✈️ Sobre o autor
Marcuss Silva Reis é piloto profissional, instrutor e professor de aviação civil, com larga experiência na formação de profissionais para o setor aéreo. Atuou como instrutor em escolas de aviação e professor universitário, sendo um dos pioneiros na estruturação do ensino superior em Ciências Aeronáuticas no Brasil.
É membro fundador do Instituto do Ar, criado nos anos 2000, e atua ativamente na promoção da educação aeronáutica e da segurança operacional.
Formado em Economia, possui pós-graduação em Docência do Ensino Superior, Ciências Aeronáuticas e Segurança da Aviação Civil, além de ser autor de obras e artigos voltados ao desenvolvimento da aviação e à tomada de decisão segura.

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Marcuss Silva Reis